segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Criança 44



Texto adaptado de postagem original de abril de 2012.

Julgo livros pela capa. Quebro a cara muitas vezes, mas continuo julgando. Sim, eu falo de livros mesmo, não de pessoas. Embora eu entenda que seja normal fazermos um julgamento imediato ao ver alguém, alguma coisa, ambiente ou animal, tendo desvencilhar da famosa "primeira impressão".

Criança 44, livro de estreia do inglês Tom Rob Smith, foi mais um caso deste. Julguei mal pela capa, por ser best seller e já criei expectativas de um livro raso, clichezado e previsível. Engano meu. Ponto pro livro. 1 a 0 no bobão aqui.

Pela sinopse esse parece mais um típico livro de suspense tolo em que o protagonista quer salvar o dia e ser o fodão mesmo com tudo e todos contra ele. Mas a coisa vai além disso.
A história se passa na União Soviética dos primeiros anos da década de 50, ou seja, últimos anos de comando de Stalin. O governo, ou melhor, a Revolução, vai sendo tocada e guiada pelas famosas e pesadas mãos do "Homem de Ferro", o qual usa de toda sua força para manter o ideal comunista acima de qualquer suspeita. Neste cenário, quando o corpo de uma criança aparece perto da linha do trem com vestígios de homicídio,  o governo decreta que se trata de um acidente com uma locomotiva, mesmo com toda a família do menino dizendo que se tratava de um assassinato. Daí surge o encarregado do assunto junto ao governo e personagem principal da trama, Liev. Funcionário do governo e fiel defensor do sovietismo, nega e trata logo de colocar o assunto para debaixo do tapete, como manda a norma russa, já que crime é coisa do capitalismo.

No decorrer da história há forte arcabouço histórico que coloca o leitor num verdadeiro mundo de opressão, mostrando nas pequenas ações do dia-a-dia todo o contraste de um estado totalitário com uma democracia. É evidente que não se pode confiar totalmente na realidade narrada, afinal trata-se de um romance ficcional escrito por um inglês. Porém, ainda levando em conta essa questão, temos um cenário cativante, promovedor de uma leitura fluída e aguçador da curiosidade. 
Além do aspecto histório, Smith nos brinda com personagens formidáveis. Liev, o protagonista, foge do padrão de personagem principal superdotado de poderes ou bondade, muito pelo contrário, pois como agente da Segurança do Estado Soviético, usa da força institucionalizada para perseguir, torturar e matar a serviço da Revolução. Seu antagonista Vassíli não fica atrás, trazendo um embate de suspense até as últimas páginas.
Neste contexto, talvez você se indague o que levaria o "crápula" Liev a querer resolver a morte de crianças. Ah, isso você vai descobrir lendo.

[SPOILERS!] Aviso: aqui vou contar um pouco da história do livro com o fim de expor uma reflexão boba que tive. Se você está com algum interesse no livro, melhor não ler. O fragmento que aqui trarei não conta o desfecho da história e tampouco o final porém é algo que eu penso que você deveria não saber antes de ler. Mas, se você quer continuar lendo, beleza, vai na fé.
A característica que mais me agradou na obra foi o modo preciso que o autor relata e descreve, sem parecer lugar comum ou sociologia de botequim, a transformação que o Estado exerce sobre as pessoas.  Apesar de estarmos diante de um caso extremo, qual seja, um Estado de exceção, não me parece absurdo tentar traçar um paralelo com o que acontece conosco hoje, nas ruídas democracias, seja brasileira ou mundial. Exemplificando, no início do livro, Liev é um exemplo de funcionário e cidadão russo da época. Fiel aos ideais e as ordem da Revolução, o funcionário da MGB enxerga a vida soviética como justa e o líder Stalin como grande guia. Porém, após revés na investigações e Liev ter sido colocado como investigado em vez de investigador, este passa a sentir o peso do sistema sobre si. Aquele mesmo regime que ele até então ajudara estava lhe oprimindo de todas as formas, fazendo-o enxergar que talvez aquela "verdade" que estava disposto a matar e morrer não seja assim tão verdade para si. O bom é que o livro "vai tirando a venda" de nosso companheiro Liev página a página, sem uma ruptura artificial que muitos livros fazem de, repentinamente, pulando de um parágrafo para o outro, o personagem sai de "vilão"  para "herói" com pouca explicação, tendo o leitor que engolir a ideia a seco.
Dentro desse pensamento, tudo é uma questão de parâmetro. Liev achava que seu trabalho era essencial para manter o justo, a verdade soberana, até que foi despertado. Aqui no Ocidente em pleno 2012 , a maioria da população acredita que a democracia existe e que a repressão policial é justa e necessária para a manutenção da ordem. Mas será mesmo? Talvez um dia, assim como Liev, algo lhes arranque a venda e os faça ver o quanto o Estado lhes obstruiu a "verdade".
Divagações, apenas divagações...  [SPOILERS!]

O livro tem seus pecados em exagerar, principalmente nos trechos de ação e luta corporal. Não são muitos "erros", porém existem e me fazem não avaliá-lo como um livro excelente. No mais, trata-se de uma boa dica de leitura, com ritmo acelerado, bons personagens, boa ambientação e até com aquele enigma de descobrir o assassino, típico dos suspenses policiais, que aqui eu deixei para segundo plano e fiquei desfrutando da trama e dos personagens.

Nota: 4 grãos de café.



quinta-feira, 26 de julho de 2018

O Barco de Prata


O velho barco de prata, sempre ele. Não enferruja e é de prata. Vive a navegar e não enferruja. Aliás, prata enferruja? Ferrugem não é própria do ferro? Aí é curioso. Assim for, a prata oxida? Também acho que não. Será? Acho bonito o barco, mesmo que não enferruje e nem possa isso fazer. Acho bonito o seu leme dourado. Faz um contraste tão belo. Será o leme de ouro? Não, acho que não. Muito caro seria um leme de ouro. E um barco todo de ouro? Seria assim tão caro? E enferrujaria? Não, também o ouro não enferruja, já que não é ferro. Mas o ferro é barato? Sim, é. Bem, depende de quem compra? Mas para um barco daria boas toneladas. Assim ficaria caro? Será? Eu queria um barcos desses. Só por dia, o velho barco de prata. Saberia eu navegar com ele? Teria eu a coragem de um capitão? Me amariam meus tripulantes? Isso pouco importa sendo apenas um dia. Seria bom? Eu e ela no navio, seria? Gostaria ela de navegar comigo? Acho que sim, ela tem bom gosto. Me daria beijos no navio? Me daria se não tivesse medo...se não tivesse medo...
E lá se vai o barco. Pra onde será que vai? Pro leste o que temos? Ásia? Não, lá é muito longe.. Talvez África, talvez África...